-
Fontainhas
O porto é vitral de boa gente
Dos que dizem palavrão
Dos que estendem a mão
É terra de quem senteNa ribeira estende-se roupa
Braços e o passado
Da saudade pouca
Dos barcos e do mercadoEm tempos da carquejeira
Rua acima carregada
Fardo mais íngreme que as ladeira
Era a miséria em troca de nada
— Dez, 2021 -
Licença
Sem te saber falar
Escrevo sem saber
Em meu tom baixo
Burburo sem dizerTalvez eu me dê demais
Pois não me sei medir
Porque é maior do que eu
E por isso tem de sairMas não posso pedir perdão
A ti nem a ninguém
Seria tolice, rendição
Por se dar tudo o que se temE quando anoitece
Levo tempo no poema profundo
Que ‘quando o amor acontece
Não pede licença ao mundo’— Dez 2021
-
O tampo e o tempo
Sentada. Ver a luz sobre as coisas ao longo do dia. Este sofá não é o mesmo que era de manhã. Esta cadeira não é a mesma que me sento agora e quando me sentei antes. Este copo sobre a mesa não é o mesmo que pousei. [Foi-se bebendo de líquido no tempo e de reflexos sobre o tampo.]
O sol entra pela sala e faz desenhos pelo chão. As sombras das coisas dançam com o passar das horas nelas. A aparente estaticidade de Tudo. E tudo mexe. Demasiado devagar para se ver. O luz já passou por todos os recantos desta sala. E eu ainda aqui sentada nela.— Nov 2021
-
Tarde
A tua voz desta tarde
Trazia a tarde na voz
A voz entardecera na tua boca
Da boca tardara a sair voz
A tarde saíra sem voz da boca
A boca sem saídaA voz que tarda
As tardes que não soube sair da tua boca— Out 2021
-
Escrevo-te um poema
Escrevo-te um poema
E já comecei
Escrevo-te um poema
Dizendo o que não sei.
Escrevo-te um poema
Com tudo o que pensei
Escrevo-te um poema
E já o acabei.
— Out 2021 -
De repente
De repente
Pente
Dente
Ente
Entre
De repente
(repetir)
— Set 2021 -
Alfama
Encontrar-te em Alfama
É um fado que se toca baixinho
Entre as bocas
E uma desgarrada
— Ago 2021 -
Torci-colo
Quando é que me apareces no colo
Me mordes o pescoço
Me deitas no solo?
Me viras do avesso
Quebras protocolo
Voltas ao começo
Me dás torcicolo?
— Jul, 2021
-
Cabrum
'Estar na terra sem ser da terra'
- ManuelaO sol vai alto entre o vale.
Cabrum queima nas encostas.
O sol não tem sombra.
O corpo mole de pós-almoço.
O sol não tem trégua.
O corpo resiste.
O sol de força tira-me a força.
E eu tiro uma sesta.
— Jul, 2021 -
Meus olhos, teus olhos
Meus olhos dentro dos teus olhos.
Teus olhos dentro dos meus olhos.
Nos teus os meus. Nos meus os teus.
Os teus nos teus. Os meus nos meus.
Os teus e os meus.
Os meus e os teus.— Jun, 2021
-
Universo
O Universo explora um espaço imaginário.
O abismo da linguagem que existe
Entre o mundo que conhecemos e o que fantasiamos.
Um corpo que deseja a metamorfose
E questiona as noções canónicas de identidade.
Exacerbado de cor, traduz uma poética do excesso.Habitamos momentaneamente um espaço indefinido
Onde somos convocados a decifrar
E a contemplar a suspensão
Um cenário de caos
Que se situa entre a magia e a estranheza.
— Mai, 2021 -
Cadeira de praia
Sentada na cadeira a apanhar sol na varanda de cimento.
Uma perna esticada pelo chão. Outra perna sobre um braço da outra cadeira, a badalar como sino. Lento. Um braço flectido, uma mão a encostar a cabeça. Outro braço desmaiado. Uma mão morta. Olhos fechados e raios de sol nas pálpebras. Duas cadeiras de praia ao sol. Uma vazia. Uma varanda. Pontas de dedos esticam-se ao copo de água. Goles largos como quem engole a tarde.
— Maio, 2021 -
A cidade e a floresta
Dá-se tantas voltas à cidade para se acabar perdido na floresta.
As árvores são prédios verticais.
— Abr 2021 -
Chocolate de manhã
Bom dia chocolate
Partia-te numa parte
Comia metade
Voltava à tarde
— Abr, 2021
-
Existimos
Haverão muitas palavras que ficarão por dizer. Haverão muitos gestos que ficarão por fazer.
Mas entre tudo aquilo que não dissemos e tudo aquilo não fizemos: existimos.
— Mar, 2021 -
Boa noite
Lua tua
Rua nua
Céu véu
Estrelas açucenas
Escuro muro
Sombras em ondas
Rio sem pio
Grilo em assobio
Pirilampos em mantos
Estrela cadente inocente— Mar, 2021
-
Antes
Teremos sempre este abraço
O encontro das nossas mãosE antes das mãos o olhar
Antes do olhar a presença
Antes da presença as palavras
Antes das palavras as cores
Antes das cores o céu
Antes do céu as folhas
Antes das folhas o mar
Antes do mar as árvores
Antes das árvores a montanha
Antes das montanhas o vento
Antes do vento o sol
Antes do sol a lua
Antes da lua o chão
Antes do chão sem chão.
— Fev, 2021
-
13 quadras
Fiz-me de forte
Rumei a norte
Deixei na mão a sorte
Que segura só a morte
Desacertei ponteiros
Sonhei mundos inteiros
Plantei canteiros
Em todos os travesseiros
Fui junto com o vento
Ao lugar do pensamento
Onde o lamento
É a cadeira onde me sento
Remei o oceano
Deste mundo insano
Que o engano
É viver em 2º plano
Fui debaixo da terra
Subi cada serra
Do gesto que me encerra
O espírito que me berra
Corri a Cidade
Meu sangue e identidade
Meu rosto sem idade
O me leve é a vontade
Dancei entre o feno
Medi meu terreno
E achá-lo pequeno
É cair no próprio veneno
Passei fogo e gelo
Enrolada no novelo
Que meu único flagelo
É que me ponham um selo
Acordo de rompante
Na noite flagrante
E por um instante
A vida ocupa-me estante
Levo na viagem
Aquela miragem
De que a paisagem
É o mundo à minha imagem
Este sono que abraça
É desenho na vidraça
Que corpo fora da carcaça
Sem alma não tem graça
Meu peito é vendaval
Minha alma o beiral
Onde meu resto mortal
Pousa entre o bem e o mal
O melhor é por fim
Viver deste motim
Que dentro de mim
Cabe um eterno jardim
— Fev, 2021 -
Fernanda
Conheci-a quando os seus dedos já se incartilhavam uns nos outros.
Quando o tempo era para si já só apenas aquela casa. E depois aquele quarto. E depois aquela cama.
Tinha vizinhas à janela da sua imaginação. E queria que a nossa visita durasse sempre mais um bocadinho do que o suposto. Perguntava sempre quando seria a próxima. Mesmo sabendo que nem nós nem ela saberíamos se haveria próxima.
Trouxe da sua casa a cadeira onde costumava sentar a cada visita. Agora aqui da minha varanda continuamos a conversar.
— Jan, 2021 -
Morte
A morte tem este poder de nos deixar despidos por fora e enxarcados por dentro. É corpo mingado do silêncio de todos os gritos. É o eco da voz e dos gestos. É uma casa onde já não vive ninguém. O chão no lugar do tecto. É esperar por ela e não saber nunca o que esperar dela. A morte sou eu a olhar a escuridão à procura de silhuetas e no chão constelações.
A morte são labirintos de água nos olhos.
E a cada pessoa que morre percebemos menos da vida. E da morte também.
— Jan, 2021