• Mesa para 4

    Na curva das tuas costas há um cigarro que se acende um atrás do outro. 

    A mesa do café é uma campânula onde os assuntos fazem relato aos copos vazios e às manchas na toalha.
    A brandura dos objetos despojados sem critério por cima e a inquietude das pernas descruzadas por debaixo.
    O remoto pranto das gargalhadas e a recolha das mãos sobre o dorso. 
    A agonia dos olhares encontrados que não ousam dizer o que sentem. A cadência da fome de um tremoço complacente com a aurora dos pensamentos e críticas.

    Mais um cigarro acende-se solitário ao nascer do imperativo de uma nova conversa. E o jantar durará enquanto houver um cesto de pão e as suas carcaças.

    — Mar, 2025

  • Serra

    Levava as montanhas nas mãos
    Como quem pensa para lá dos planaltos
    Vales entre vértebras
    Campos para na extensão de um braço

    Se digo o que penso não chego ao pequeno-almoço
    Palavras treinadas durante o esboço de uma manhã que se soletrava incandescente

    Aqui do alto da serra, o burburinho dos pardais é uma conversa entre pavios extintos
    Flores que brotam sem terem pecado nem perdão
    E o vento premonitório de tempestade traz a certeza da tarde

    — Mar, 2025

  • Março

    Poderei eu despedir-te do Inverno e cumprimentar-te a Primavera - ainda que a certeza única seja a de que fomos de todas as vezes Outono?

    — Mar, 2025

  • Um punhado de terra

    Tomemos este punhado de terra de assalto
    As vedações que outrora conhecemos
    O alento dos dias serenos e demorados
    A toalha de renda imaculada por mãos que já não dormem

    Peguemos na razão pela ponta dos cabelos
    Trazendo das trevas a periferia dos nenúfares

    Envoltos em saudade
    Inundados por tudo aquilo que não nos quis
    Guardemos num saco de pano o desvio das árvores ao relento
    Verguemos a costela mais à esquerda
    sobre um colo onde as urtigas fizeram galope

    Chafurdados no fel de um outro querer, resta-nos a esperança que este seja por fim o nosso lugar.

    — Mar, 2025

  • Mulher

    A mulher vive:

    No ventre da mãe.

    No colo da avó.

    No abraço da tia.

    Nos olhos da mana.

    Na boca da filha.

    No pescoço da ama.

    Na mão da amiga.

    Nos ombros da vizinha.

    Nas costas da colega.

    Na boca da conhecida.

    Nos pés da desconhecida.

    A mulher vive dentro da mulher.

    Antes de ela ser mãe, avó, tia, mana, filha, ama, amiga, vizinha, colega, conhecida, desconhecida.

    A mulher vive dentro da mulher.

    E só depois no homem.

    — 8 Mar, 2025

  • Monstruação

    Há tempestades que duram mais do que a noite.

    Lençóis amarrotados de sono, preguiça. E fúria no resguardo. Frinchas de luz debaixo da porta.
    A persiana a bater contra o caixilho.
    A cabeceira estanque.
    A melancolia dos pés descalços ao fundo da cama.

    Às vezes apetece-me fumar.
    As pessoas fumam para não terem de falar.
    E estarem na mesma juntas umas com as outras.
    Cúmplices do silêncio dos cigarros. E das coisas que se dizem sem se dizerem. Entre o fumo e uma passa.

    — Mar, 2025

  • Borda

    Amar-te-ei na borda de uma chávena de chá.

    — fev 2025

  • Arquitectura

    Desde a arquitectura:

    Recortes e fronteiras de uma casa imaginada. As paredes são quatro ensaios que habitamos.
    Destruímos e construímos a partir dos desejos. Ecossistema inquietante. Anti-documentário. Câmara. Cerco. Sobrevivência ou resistência.

    Rodapé vertiginoso.
    Pé direito fermenta possibilidades. Altura de tubo de ensaio.
    Uma lâmpada. Um mártir.

    Acordam, regam, comem, falam, deitam. Voltam no dia a seguir.

    — Fev, 2025

  • Tempo

    A culpa não é do tempo, é da gente que não sabe o que fazer com ele.

    — Fev, 2025

  • Jaz

    Como se faz o funeral de nós dentro de nós?
    Visita-se esta sepultura? Mete-se flores? Cravos. Cardos. Limpa-se a lápide de garrafão? É jazigo. É gaveto.

    Não tem porta e está arrombada. Aqui jaz eu. Eterna saudade.

    — Jan, 2025

  • Plancton

    [Quantas camadas tem um só sonho?]

    Nunca é “somente um sonho”.
    Exige explicações.
    Uma obra interpretada a partir de memórias. Um jogo de correspondências que tanto evoca seguir trilhos como a perda da saudade e do consolo.
    Num quase-solo urgente, temas e personagens, frases radiofónicas. A partir do mundo dos mortos para o mundo dos vivos. E vice-versa.

    — "No Antigo Testamento, na mitologia Grega ou em tempos de guerra, o sacrifício foi sendo encarado como um ato para salvar o colectivo e salvaguardar a sobrevivência da comunidade.”

    O sonho é uma proposta individual de criação — e de sacrifício, talvez.
    O alinhamento de contemplar um regresso que se espera triunfante.

    8 faixas
    A presença dos corpos e as suas imagens projectadas em tempo diferido.
    3 mergulhos
    Por dentro do próprio corpo
    10 dobras
    A simbiose entre paredes gastas e o desmoronar do que outrora fora uma relação à beira do abismo.
    1 palavra
    Pode nascer do gesto e transformar-se em movimento.

    É possível ser-se espectador do próprio velório. Fazer-se de ator residente.

    No sonho ao dormir há pela primeira vez a possibilidade do tudo.

    Raras vezes é possível ouvir o branco. Uma partícula. A complexidade do todo.
    Marionetas, esses espíritos curiosos sem horários ou destinatários fixos.
    Plancton.

    É possível inventar novos mitos.
    Imaginar uma ilha.
    O repertório composto entre língua e paisagem.
    Um recital de escuta e inconsciência informal.

    Caberá tudo numa mala?
    [consulte junto da bilheteira]

    — Jan 2025

  • Mão porta vai bater àquela morta

    Começamos no vazio.
    Curiosa, uma mão dá-se a outra.
    Como se fosse uma encenação do vento.

    Cada mão é agora um mapa.

    — Jan 2025

  • O covil dos pássaros

    Os pássaros cheios de sono vão ao conforto do seu próprio ninho.
    Descem às entranhas da terra para depois subir.
    A acção de caçar minhocas ilumina a esperança e a tragédia ao mesmo tempo.
    Num espectáculo intimista. 


    Um bando é uma orquestra sinfónica largada aos ceús.
    Um diálogo sobre liberdade para defender e celebrar.

    Um experimentalismo de mãos mortas em segundo acto.
    Cenas curtas e números musicais.
    Inquietações, angústias, sonhos e desejos impactados pela maturidade de um voo. 
    Asas em soprano para relevar uma viagem pelo mundo e a vida das folhas.

    O espaço de performance transforma-se num laboratório vivo de investigação.
    Onde as crianças são apenas espectadoras dos pássaros que moldam segredos em círculos em torno dos seus próprios corpos. 

    Em estágio o bando procura um futuro possível num outro lugar distante.
    A viagem é tanto exterior, no confronto com todos os perigos e todas as lutas,
    como interior, dentro do dorso que sentem.


    — Jan 2025

  • Solstício de Inverno

    Rumou a uma cabine telefónica desligada da rede.
    Montada para falar com quem não está.
    Telefonou a um número não atribuído para encarar com empatia aquilo que não conhece.
    O desamparo e a dor.
    Em busca de algum consolo.

    Estava ocupado.

    — Jan 2025

  • Janeiras

    Na primeira madrugada do ano: afirmámos uma meta neste espaço dos meses.

    O reflexo de algumas pistas entre as possíveis figuras.

    Propostas que não podíamos deixar às portas de brutar logo nos primeiros dias de janeiro.

    E pela manhã do dia, veados, dois, apareceram pela primeira vez no jardim defronte à casa. Fugiram no mesmo instante que a portada rangeu.

    — Jan 2025